6/19/2009

Os Últimos Carijós: Escravidão Indígena em Minas Gerais: 1711-1725

Renato Pinto Venâncio Universidade Federal de Ouro Preto

Nos últimos anos, a historiografia relativa à escravidão indígena revelou uma realidade surpreendente. Contrariando assertivas consagradas, vários estudos mostraram que as populações nativas do Novo Mundo português foram, nos séculos iniciais da colonização, sistematicamente exploradas em fazendas destinadas à agricultura de exportação. Nas áreas economicamente periféricas, o escravismo com base no gentio da terra estendeu raízes profundas, sobrevivendo até a segunda metade do século XVIII. No dia-a-dia das plantações, no cotidiano da vida familiar e até mesmo nos momentos de revolta, os cativos ameríndios compartilhavam seus anseios e expectativas tecendo laços de solidariedade no universo das senzalas.
Em Minas Gerais colonial, a escravidão baseada na exploração do braço nativo foi implantada pelos bandeirantes. Já francamente decadente em São Paulo seiscentista, a instituição sobreviveu até a segunda década de ocupação da região do ouro, para em seguida praticamente desaparecer das vilas, arrais e lavras mineiras.
No presente trabalho, analisaremos a evolução da exploração do trabalho indígena no Termo da Vila Carmo, futura Mariana, durante o período que vai do estabelecimento da Câmara (1711) até a extinção local, ou quase-extinção, da exploração escravista dos grupos ameríndios (1725).
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Infelizmente, a documentação relativa ao início do povoamento de Mariana é pobre em informações a respeito das ocupações destinadas aos indígenas. Alguns indícios mostram, porém, que entre fins do século XVII e início do XVIII o gentio teve uma participação bastante significativa na vida social e econômica local.
Nos anos 1707-1709, por exemplo, os carijós mostraram-se fiéis aos próprios senhores, lutando aos milhares na Guerra dos Emboabas. Na década seguinte, os dados dos inventários post-mortem, estes últimos conservados somente em uma parcela mínima, arrolam várias lavras mineradoras em que os grupos ameríndios respondiam por um porcentual importante da escravaria.
Em 1716, Antônia Leme herdou do marido importantes lavras, e junto a elas 23 cativos, sendo 12 deles carijós. O mesmo ocorreu com Ana Maria Borba que, apesar de ser filha de uma das mais ricas e influentes famílias locais, manteve até a morte quatro carijós em seu plantel de 15 escravos. Mesmo os senhores mais poderosos de Mariana, aqueles que podiam recorrer ao mercado internacional de escravos, não deixavam de dispor de alguns índios remanescentes da primeira fase do povoamento.
Não há como negar que os ameríndios tenham tido um papel econômico importante na fase inicial da extração do ouro. Aliás, alguns testemunhos revelam, bem antes da ocupação sistemática de Minas Gerais, a habilidade do gentio da terra na lide aurífera. É isso, pelo menos, o que sugere a Instrução de Regimento de D. Rodrigo de Castelo Branco, datada de 1679, cujo texto arrola os carijós como trabalhadores regulares nas pobres lavras de Iguape e Cananéia: Terão particular cuidado de que o Apontador Francisco João da Cunha com os índios e ferramentas necessárias trabalhem na data de sua Alteza que lhe mandei medir no Ribeiro de N. Senhora da Conceição, e o Ouro que tirarem os índios, se entregará com recibo ao Apontador Francisco João da Cunha.
Nas mais diversas atividades, a população ameríndia era explorada ou servia de aliada aos bandeirantes paulistas. O levantamento dos raros inventários sobreviventes à ação devastadora dos parasitas e da umidade releva que, no início da década de 1710, os cativos carijós respondiam por 16 a 23% da força de trabalho da Vila do Carmo.
É bastante provável que o gentio também fosse utilizado localmente nas tarefas tradicionalmente a ele atribuídas em São Paulo colonial. Dada a ausência de caminhos , os cabras da terra deviam percorre as íngremes trilhas que uniam as lavras ao núcleo urbano, transportando mercadorias essenciais para a sobrevivência do garimpo. A caça, a pesca e a coleta, em virtude da irregularidade das linhas de abastecimento, também parecem ter tido bastante importância nos primeiros tempos da colonização mineira. Enquanto os homens encarregavam-se destas tarefas, as mulheres ocupavam-se do artesanato doméstico ou então trabalhavam na agricultura de subsistência.
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A partir de 1718, quem percorresse as lavras marianenses perceberia ano após ano o desaparecimento do gentio da terra. Na década de vinte, a escravidão indígena marianense entrara em franco declínio. Os carijós de idade avançada e doentes, pouca serventia tinham, atingindo preços irrisórios que não se equiparavam aos dos pequenos animais, ou representavam uma fração mínima do valor referente aos negros africanos.
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Geralmente, o metal precioso de Guarapiranga era explorado nos rios Piranga, Calambau, Turvo e Bacalhau, ou então nas vertentes da Serra da Piedade e do Tatu. As terras que ficavam nas margens dos rios também prestavam-se à atividade agrícola. Os donos das lavras muitas vezes associavam a lide aurífera à produção de alimentos, o que permitia o desenvolvimento de uma incipiente agricultura mercantil de subsistência, produtora de milho, banana, mandioca e cana-de-açúcar. Não era raro os inventários registraram numerosos engenhos e alambiques de cobre nas imediações do arraial ou nas paróquias vizinhas.
Durante a primeira metade do século XVIII, a freguesia permaneceu como limite da área de mineração; contribuía para isso a existência de uma barreira - bem mais poderosa do que os acidentes geográficos ou as florestas virgens - representada pelos índios bravios da Zona da Mata. Os camancâns, os pataxós, os maxacalis, os botocudos e os puri-coroado, durante muitos anos impediram o avanço das hostes mineradoras, estabelecendo uma fronteira militar sobre a fronteira econômica.
Para os grupos indígenas não domesticados, o arraial de Guarapiranga encerrava o limite aceitável da expansão colonial. As incursões para além daquele limite eram ferozmente rechaçadas, como ocorreu em 1731 e 1733, por ocasião dos ataques indígenas às freguesias de Barra Longa e Furquim.
Paralelamente à resistência indígena, a Coroa portuguesa, temerosa de que a abertura de novos caminhos em direção ao litoral pudesse intensificar o contrabando e a evasão fiscal, não estimulava a ocupação da Zona da Mata. Durante várias décadas a exploração do ouro foi protelada até que se conseguisse a aquiescência da Metrópole e a esperada vitória sobre os índios.
Na prática, a fixação da nova fronteira colonial só ocorreu em 1758, por ocasião da ocupação das matas do Pessanha. Ao longo dos anos, os primeiros povoadores dessa nova região foram progressivamente conquistando outras áreas, até chegarem aos contrafortes da Serra da Mantiqueira, na região do Rio Pomba, onde, em 1767, foram abertas lavras auríferas.
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Retirado do site: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01881997000200009&lng=pt&nrm=iso